(Crucifixão, Giotto e colaboradores,1308-1310 Basílica Menor de Assis)

Sexta-feira, 7 de abril

SEXTA-FEIRA SANTA – ANO A

Mateus 27, 32-56

Estamos no auge da história da salvação dentro da liturgia do Tríduo Pascal. Convidamos você a desacelerar, dedicar tempo a estudar e rezar estes versículos da Palavra. A leitura dos trechos do Evangelho de Mateus destes dias solenes se concentra na localização dos fatos, imersos na criação: um olival, uma montanha e um jardim. Hoje estamos no Gólgota, lugar de tortura e morte. Estamos diante da história mais importante de todo o Evangelho. Aqui, hoje, neste monte fora de Jerusalém, temos a oportunidade de encontrar este rosto de Deus. Ontem, no jardim das oliveiras, Jesus nos ensinou a orar. Hoje ele nos ensina a viver.

É por isso que “contar” o dia de hoje é uma tarefa impossível: podemos apenas sugerir algumas ideias, com um convite a todos vocês para desacelerar, quase parar totalmente hoje, e focar seu olhar em cada versículo. Cada passo merece um dia, uma semana de meditação silenciosa. Em cada versículo aqui encontramos explicações de toda a Escritura, dos profetas, da Lei, das cartas de Paulo, do Apocalipse, da patrística, da teologia medieval, do magistério da igreja, da Laudato Si’. Aqui encontramos a criação que nos fala sobre esta morte, o escurecimento do céu, o véu do templo – feito por mãos humanas – que se rasga. Cabe a nós escolher fixar ou não o nosso olhar na glória de Deus, que se manifesta hoje no corpo dilacerado que está pendurado na cruz, como fazem o malfeitor e o centurião e, assim, ser salvos. Ou agir como os sumos sacerdotes, fariseus e a multidão, que zombam do que se encontra diante deles, mas que mesmo assim também são salvos pela misericórdia de Deus.

“Saindo, encontraram um ho­mem de Cirene, chamado Simão, a quem obrigaram a levar a cruz de Jesus.” A cena se abre com um imigrante da Líbia, na África, um “pobre Cristo” que voltava do trabalho no campo. Quem carrega cruzes ou ajuda a carregá-las nunca é rico ou poderoso, mas sempre alguém visto como inferior. Apesar disso, esse homem se torna um dos protagonistas da cena. Não é Simão, o discípulo sobre quem Jesus fundou a igreja, mas outro Simão: um discípulo involuntário que passa a seguir o caminho cristão e, de fato, com seus filhos e sua esposa Evódia, é mencionado tanto na carta aos Romanos quanto no Evangelho de Marcos como o pai de Alexandre e Rufo.

No sofrimento, quase sempre procuramos algum tipo de anestésico: “deram-lhe de beber vinho misturado com fel”, mas Ele se recusou a beber. A cena em que O despojam de suas vestes é sempre comovente e humilhante: “dividiram suas vestes entre si, tirando à sorte”. A majestade de Deus está em não possuir nada de seu. “Foram crucificados com ele dois ladrões, um à sua direita e outro à sua esquerda.” A cruz é como uma árvore que se ergue nesta montanha, lembra-nos a árvore da vida rejeitada por Adão (cujo crânio é frequentemente representado ao pé da cruz). Jesus sobe nesta árvore da morte para derramar Seu sangue sobre a caveira, que representa a morte de cada um de nós, para dar a vida. Seu sangue irriga o solo como o sangue de muitos mártires da ecologia que lutam por justiça social e ambiental. O sangue dos mártires é semente de cristãos, como diz Tertuliano. Neste momento da glória de Cristo estão presentes os dois criminosos, “um à sua direita e outro à sua esquerda”, os lugares exatos onde Tiago e João tão ansiosamente desejavam estar. Como precisamos aprender a orar! Manter Jesus no meio de nós, no meio da nossa miséria, em solidariedade com toda a humanidade representada à direita e à esquerda: os criminosos e os que estão convencidos de que não o são.

Quanto nós, cristãos e cidadãos do mundo, temos que aprender com esta imagem profética! Quando entendermos que a verdadeira política não é ocupar posições de poder para defender algo com cruzadas e partidos, mas colocar os últimos dos últimos em primeiro lugar, ouvir verdadeiramente o grito dos pobres e da terra, então poderemos realmente ter esperança num mundo melhor. Quão importante é que os cristãos se comprometam com uma política profética! Se nosso rei é Jesus crucificado, então realmente há esperança. É uma esperança sólida, pois junto com um mundo formado por uma minoria de reis que alimentam guerras, abusos e corrupção, na história o ser humano conheceu os direitos humanos, a solidariedade e a ecologia integral, construídos por muitos reis que escolhem, em silêncio e todos os dias, colocar-se a serviço dos outros.

“Os que passavam”, juntamente com os “príncipes dos sacerdotes, os escribas e os anciãos” e até “os ladrões, crucificados com ele, também o ultrajavam”. Um coro unânime de críticas e insultos a este Deus que mostra sua majestade do lenho da cruz. E quão atual é esta palavra, quantas críticas a este Deus que aceita o sofrimento, que toma sobre si as nossas cruzes!

(Pietro Perugino, Crucifixão, 1482 ca, Washington, National Gallery of Art)

“Desde a hora sexta até a nona, cobriu-se toda a terra de trevas.” A Criação nos fala todos os dias. Mas hoje tudo assume um significado especial: encontramo-nos numa noite que começa no jardim do lagar de azeite em Jerusalém, que foi marcada por provações e ultrajes, pela confusão do caminho, pelo Monte da Caveira. Aparentemente estamos na sexta hora, a hora em que o sol está no seu ponto mais alto, a hora de maior luz, mas também a hora da desobediência de Adão e Eva. O pecado é como um momento em que a criação se separa do Criador e, de fato, Adão e Eva se escondem. A escuridão se esconde da luz mais forte. O fim do mundo acontece na montanha do Gólgota. O mundo do pecado acaba. Não temos que esperar por outro fim do mundo: nos Evangelhos ele já está descrito aqui, com este eclipse.

“‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ […] Jesus de novo lançou um grande brado, e entregou a alma.” Não dedicaremos a esta cena um minuto de silêncio: convidamos você a dedicar, ao ler esta reflexão hoje, dez minutos ou uma hora de silêncio a contemplar esta theoria, este “espetáculo”, dando-lhe o tempo que merece.

Ofereçamos o nosso silêncio diante desta imagem.

(Diego Velázquez, Cristo na Cruz, 1631, Madrid, Museu do Prado)

Ele expirou. Até Deus faleceu. A vida é inspirar e expirar. Ter pavor da morte equivale a ser insaciável: muitas vezes queremos respirar até o ponto de estourarmos. Guardamos para nós os recursos do planeta, os relacionamentos, o bem-estar, nossa própria vida, com medo de perdê-los. Deus, que tudo criou com uma ação de kenose, despojando-se de seu infinito para dar lugar às coisas finitas, no despojamento da cruz nos dá agora uma nova criação. Um novo nascimento. Sem véus, Deus se revela a nós. Expirando.

 

A passagem se encerra, espelhando a maneira como se iniciou, com as categorias que assistiram a esse espetáculo: o poder, simbolizado pelo centurião, e a multidão, ou seja, o povo. Na história, os religiosos da época desaparecem, sua presença se perde nos acontecimentos dessa nova criação. Um novo mundo se inicia, uma nova criação, “o véu do templo se rasgou em duas partes”. O véu que escondia o Santo dos Santos é rasgado, Deus “se revela”, mostra seu rosto. As águas se rompem. É um parto doloroso: o Filho nasce “clamando em alta voz”, dizendo “Pai”. Um nascimento na dor e no pecado do mundo. Nossa mente está convencida de que estamos testemunhando uma cena de morte quando, pelo contrário, é um nascimento.

“O centurião e seus homens que montavam guarda a Jesus, dian­te do estremecimento da terra e de tudo o que se passava, disseram entre si, possuídos de grande temor: ‘Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!’.” Uma frase que vem da observação e contemplação desta cruz. É ele quem o diz, um homem que exerceu o poder e a morte por profissão. Somos os torturadores de Deus e, apesar de tudo, somos nós que podemos reconhecê-lo no rosto de quem sofre.

São Francisco, na estupenda paráfrase do Pai Nosso, nos lembra que: “E não nos deixeis cair em tentação oculta ou manifesta, repentina ou importuna. Mas livrai-nos do mal passado, presente e futuro” (Fontes Franciscanas 274). Agradecemos ao Senhor pelo imenso dom de sua vida para nós e por nos ensinar que um caminho alternativo para o mal pode ser trilhado. Rezemos neste dia de silêncio para que esta nova criação seja uma semente de conversão para nós.

Laudato si’!

(Cruz de São Damião, desconhecido, século XII, Basílica de Santa Clara, Assis)