Sexta-feira, 15 de abril
SEXTA-FEIRA SANTA – ANO C
Lc 23, 33-48

Estamos no auge da história da salvação. Com a liturgia do tríduo pascal, convidamos você a desacelerar, estudar e rezar sobre estes versículos da Palavra. A leitura dos trechos de Lucas destes dias solenes se concentra na localização dos fatos, imersos na criação: uma horta, uma montanha e um jardim. Hoje estamos no Gólgota, lugar de tortura e morte. Estamos diante da história mais importante de todo o Evangelho de Lucas, que nos últimos meses tentamos compreender em seu desenvolvimento: na primeira parte surge o médico, o tratamento através das palavras até a história da Transfiguração; em seguida, a busca pelo rosto. Aqui, hoje, nesta montanha fora de Jerusalém, temos a oportunidade de encontrar este rosto de Deus. A primeira parte do Evangelho nos convida a ouvir; a segunda a ver. Ouvir, ver, agir em oração. Ontem, na horta (horto), Jesus nos ensinou a orar. Todo o evangelho da paixão, e em particular este sobre o qual hoje focamos o nosso olhar, é uma excelente ocasião para a oração: é um θεωρέω (em grego, theoria), um “show”, como se define no final desta passagem, que todos vieram assistir. A única vez em todo o Novo Testamento que esta palavra é usada para indicar que temos uma visão de Deus aqui. Contemplar este texto é como rezar, é como ver Deus face a face.

É por isso que “contar” o dia de hoje é uma tarefa impossível: vamos apenas sugerir algumas idéias, com um convite a todos vocês para desacelerar, quase parar totalmente hoje, e focar seu olhar em cada versículo. Cada passo merece um dia, uma semana de meditação silenciosa. Em cada versículo, aqui, encontramos explicações de toda a Escritura, dos profetas, da Lei, das cartas de Paulo, do Apocalipse, da patrística, da teologia medieval, do magistério da igreja, da Laudato Si’. Encontramos o significado de um evangelho, o de Lucas, escrito por aqueles que não encontraram Jesus diretamente, mas “organizaram as histórias” dirigindo-as a Teófilo, a terceira geração de cristãos, que basicamente somos todos nós. Nenhum de nós conhecemos Jesus diretamente, nem conhecemos quem o conheceu em vida. Devemos confiar nas histórias organizadas para nós. 

Aqui encontraremos os dois maiores teólogos do evangelho: um criminoso – o único que chamará Jesus com a expressão ‘Deus’ – e um carrasco. Aqui encontramos a criação que nos fala desta morte: o céu escurecendo, o véu do templo – feito por mãos humanas – que se rasga. Quem é evangelizado primeiro, contemplando o crucifixo e a criação que fala, são um criminoso e um centurião: desaparecem Pedro e os apóstolos, desaparecem os olhos das testemunhas e seus amigos, e Lucas coloca cada um de nós no centro da mensagem, com nossas limitações e nossos pecados, e o mal que nós mesmos trazemos ao mundo. Cabe a nós escolher fixar o olhar na glória de Deus, que se manifesta hoje neste corpo dilacerado que pende da cruz, como fazem o malfeitor e o centurião, e sermos salvos; ou agir como os sumos sacerdotes, os fariseus e a multidão, que zombam deles, mas que em todo caso são salvos pela misericórdia de Deus, o único verdadeiro e grande protagonista de todo o Evangelho de Lucas.

“Chegados que foram ao lugar chamado Caveira (Calvário)”. Assim como ontem entramos em um horto que é definido como “lugar”, hoje também chegamos a um “lugar”. Em Lucas, este é um aspecto importante porque o único lugar na tradição é o templo, um espaço de oração e diálogo com Deus. Todo o resto é um não-lugar. É uma montanha: Deus se manifesta ao mundo na criação, não apenas em um templo feito por mãos humanas. Aliás, mais ainda, manifesta-se fora da porta da cidade, na montanha das execuções capitais, espetáculo para quem teve que aprender a justiça dos homens.

E “ali o crucificaram, como também os ladrões, um à direita e outro à esquerda”. A cruz é a árvore que se ergue sobre esta montanha, lembra-nos a árvore da vida rejeitada por Adão, cujo crânio é muitas vezes representado ao pé da cruz. Jesus sobe nessa árvore da morte para irrigar este crânio com seu sangue, que é basicamente a morte de cada um de nós, para dar vida. E nesta ação de glória, há dois criminosos nos lugares ansiosamente desejados por Tiago e João, que queriam estar “um à direita e outro à esquerda” de Jesus. Quanto devemos aprender a orar! Jesus no meio, entre nossas misérias, solidário com toda a humanidade representada à direita e à esquerda: quem é criminoso e quem está convencido de que não é. Quem é irmão mais velho e quem é irmão mais novo, ambos filhos de um pai misericordioso que vive na expectativa.

Jesus é aquele pai misericordioso, que grita: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem”. Este é o julgamento, no Monte da Justiça, fora dos muros da cidade: Jesus pede perdão! Jesus, que disse “não julgueis”, “perdoai”, “sede misericordiosos como o Pai”, “amai os vossos inimigos”. Deus só tem filhos, não pode ter inimigos. Isso é julgamento, salvação: responder ao mal com o bem. Nós, seres humanos, como os terroristas galileus mortos por Pilatos, gostaríamos de responder ao mal com o mal, à guerra com a guerra, ao pecado com o castigo do inferno. A boa notícia do evangelho é esta: Deus não veio para executar ninguém, mas somos nós que condenamos uns aos outros, iludidos e confusos por imagens erradas de Deus. Isso não significa justificar o mal: a cruz continua sendo o mal supremo. Mas Deus é colocado, em relação ao mal, em uma posição muito diferente da dos homens. “Eles dividiram as suas vestes e as sortearam.” Esta imagem de Deus perturba-nos a todos, todos os dias, quer sejamos “povo”, quer sejamos “religiosos” ou “poder”.

Crucifixo de Santa Croce, Cimabue, 1272-1280, Basílica da Santa Cruz em Florença

Na verdade, “a multidão conservava-se lá.” Em Lucas não há julgamento negativo da multidão, que parece quase contemplar, mesmo que à distância. Um olhar quase desapegado, como costumamos fazer, com indiferença, quando folheamos as páginas dos jornais que contam imensas tragédias longe da nossa casa.

Por outro lado, “os príncipes dos sacerdotes escarne­ciam de Jesus, dizendo: ‘Salvou a outros, que se salve a si próprio, se é o Cristo, o escolhido de Deus!’.” Viam e zombavam. Todos nós, leigos ou religiosos que ajudam na paróquia, basicamente não entendemos um Deus como este, que não mostra seu poder, que não ouve nossas orações justas. “Salvar-se” é a maior pretensão de egoísmo, pessoal e coletivo. Todos, basicamente, antes de tudo, querem salvar-se a si mesmos, sua família, sua cidade, sua nação da invasão inimiga, sua própria religião mais justa que a do ‘outro’. Todos vivem com o terror da morte, que mais cedo ou mais tarde virá. Felizmente, Deus não se salva. Seria o mal supremo que aniquilaria todos os outros “males menores”.

E também os representantes do poder: “Do mesmo modo zombavam dele os soldados. Aproximavam-se dele, ofereciam-lhe vinagre e diziam: ‘Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo’.” É a mesma questão: o “salvar-se”, o que basicamente um Rei faz, o ápice de um poder fundado no egoísmo. No caso de um ataque, o primeiro que se protege é o rei. Que rei pode ser aquele que não se salva? Oferecem-lhe vinagre, vinho estragado, série B da vida, para zombar piedosamente dele sobre aquela mesma tentação do deserto, a tentação do poder: “se me adorares, tudo será teu”. Essa ofensa é realizada quando “por cima de sua cabeça pendia esta inscrição: ‘Este é o rei dos judeus’.”

Francisco de Zurbarán, Crucifixo, 1627, Chicago, Art Institute

Quanto nós, cristãos e cidadãos do mundo, temos a aprender com esta imagem profética! Quando entendermos que a verdadeira política não é ocupar posições de poder para defender algo com cruzadas e com partidos, mas colocar os últimos dos últimos em primeiro lugar, ouvir verdadeiramente o grito dos pobres e da terra, então poderemos realmente ter esperança em um mundo melhor. Quão importante é que os cristãos se comprometam com uma política profética! Se nosso rei é Jesus crucificado, então realmente há esperança. É uma esperança certa, pois junto com um mundo formado por uma minoria de reis que alimentam guerras, abusos, corrupção, na história o ser humano conheceu os direitos humanos, a solidariedade, a ecologia integral, construída por muitos reis que escolhem, em silêncio e todos os dias, colocar-se a serviço dos outros.

“Um dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava contra ele: ‘Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós!’.” Provavelmente são os dois cúmplices de Barrabás, presos com ele por motim. E são dois, como muitas vezes acontece em Lucas, para expressar dois pontos de vista que coexistem em nossa humanidade. O primeira blasfema, dizendo: “se és o Cristo”, e é como se quisesse dizer: “Também combati bem contra os romanos, e agora sofro uma sentença injusta infligida pelo opressor”. Ele tentou derrotar o mal com as armas do mal. Ele é um pouco “menos egoísta”, tem um valor em comum com Jesus, a honra, e pede para que aquele que é o Cristo salve “também a nós”.

“Mas o outro o repreendeu: ‘Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício?’” Aqui aparece o “bom ladrão”, em sintonia com toda a doçura do texto de Lucas em relação aos outros Evangelhos. É a primeira vez, no Evangelho, que um homem chama Jesus com o título de Deus. Ninguém antes dele tinha ido tão longe: nem Pedro, nem os demônios. Como só ele pode entender isso? Porque se encontra em provação, porque se reconhece pecador, quando diz: “Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes”, e porque está em contato íntimo com um absurdo injustificável: “mas este não fez mal algum.” Por que, então, Deus está lá? Só para estar comigo, para me dar dignidade dentro dos meus limites, porque o amor é mais forte até do que a morte. Nisso o malfeitor entende que Jesus é Deus.

Neste diálogo dramático reside uma grande esperança. Mesmo na hora mais escura, na hora da morte, Deus é Emanuel, está conosco, Jesus pode dizer: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”. Ele pode usar o futuro quando tudo acabar para nossas categorias. Há um reino de verdade para habitar, a morte não nos diz a última palavra. Se a morte acontece na solidão é uma tragédia, mas se for na companhia de Cristo, torna-se “nossa irmã morte corporal”. Nossa, de toda a humanidade, sem o terror de chegar lá, mas com a consciência de que toda vida é uma dádiva. Há um “desfile” no qual habitar, um jardim, a criação, o que nós, seres humanos, originalmente recusamos: a felicidade de nos sentirmos criaturas. Neste diálogo, nesta Sexta-feira Santa, cada um de nós tem a oportunidade de dar sabor à própria vida!

Pietro Perugino, Crucifixão, 1482 ca, Washington, National Gallery of Art

“Era quase à hora sexta e em toda a terra houve trevas até a hora nona”. A Criação nos fala. Todos os dias. Mas hoje tudo assume um significado especial: encontramo-nos numa noite que começa no jardim do lagar de azeite em Jerusalém, que foi marcada por provações e ultrajes, pela confusão do caminho, pelo Monte da Caveira. Aparentemente estamos na sexta hora, a hora em que o sol está no seu ponto mais alto, a hora de maior luz, mas também a hora da desobediência de Adão. É o pecado como um momento em que a criação se separa do Criador e, de fato, Adão se esconde. A escuridão se esconde da luz mais forte. O fim do mundo acontece na montanha do Gólgota. O mundo do pecado acaba. Não temos que esperar por outro fim do mundo: nos Evangelhos ele já está descrito aqui, com este eclipse.

Começa um novo mundo, uma nova criação, “o véu do templo rasgou-se pelo meio”. O véu que escondia o Santo dos Santos é rasgado, Deus ‘se revela’, mostra seu rosto. A bolsa se rompe, é um parto doloroso, nasce o Filho: “deu então um grande brado e disse: ‘Pai’.” Um nascimento na dor e no pecado do mundo. Estamos convencidos, com nossas categorias mentais, que estamos presenciando uma cena de morte, mas na verdade é um nascimento.

“‘Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito’. E, dizendo isso, expirou.” Não vamos dedicar um minuto de silêncio: convidamos você a dedicar hoje, ao ler esta reflexão, dez minutos de silêncio. Uma hora de silêncio, contemplando essa teoria, esse “show”, com o tempo que ele merece.

Vamos dedicar nosso silêncio diante desta imagem.

Diego Velázquez, Cristo na Cruz, 1631, Madrid, Museu do Prado)

Ele expirou. Deus também faleceu. A vida é inspirar e expirar. Ter pavor da morte equivale a ser insaciável: muitas vezes queremos respirar até o ponto de estourarmos. Guardamos para nós os recursos do planeta, os relacionamentos, o bem-estar, nossa própria vida, com medo de perdê-los. Deus, que tudo criou com uma ação de kenose, despojando-se de seu infinito para dar lugar às coisas finitas, agora, no despojamento da cruz, nos dá uma nova criação. Um novo nascimento. Sem véus, Deus se revela a nós. Expirando.

A passagem se fecha, espelhando a mesma maneira como foi aberta, com as categorias que assistiram a esse espetáculo: o poder, simbolizado pelo centurião, e a multidão, ou seja, o povo. Na história, os religiosos da época desaparecem, sua presença se perde nos acontecimentos dessa nova criação.

“Vendo o centurião o que acontecia, deu glória a Deus e disse: ‘Na verdade, este homem era um justo,.” Lucas faz questão de destacar não apenas que Jesus é o filho de Deus, mas que ele é um justo. Junto com o malfeitor, o carrasco é o único em cena que faz uma profissão de fé. Uma frase que vem da observação e contemplação desta cruz. É ele quem o diz, um homem que exerceu o poder e a morte por profissão. Somos os torturadores de Deus e, apesar de tudo, somos nós que podemos reconhecê-lo no rosto de quem sofre. Deste modo Lucas fala aos primeiros cristãos, os da geração de Teófilo, que, apesar da sua fé, sofrem perseguições e dificuldades. Mesmo dentro dessa dor, a face de Deus pode ser vista.

“E toda a multidão dos que assistiam a esse espetáculo e viam o que se passava voltou batendo no peito.” Nessas multidões, que observam “esse espetáculo”, essa theoria (θεωρέω), estamos todos nós, que voltamos. Antes de fugir da morte, depois de ver esses fatos, voltando para casa batendo no peito, reconhecemos nossas próprias falhas. Para os judeus, este תשובה (teshuvá, em hebraico), literalmente um “regresso ao lar”, tem sabor de arrependimento e conversão. Depois de contemplar a face de Deus, o homem só pode se converter. E como a manifestação que ocorreu no monte Gólgota hoje também é cósmica, com o sol obscurecido e o véu do templo rasgado, também podemos dizer que é uma conversão ecológica.

São Francisco, na estupenda paráfrase do Pai Nosso, nos lembra que: “E não nos deixeis cair em tentação oculta ou manifesta, repentina ou importuna. Mas livrai-nos do mal passado, presente e futuro.” (Fontes Franciscanas 274) Agradecemos ao Senhor pelo imenso dom de sua vida para nós e por nos ensinar que um caminho alternativo para o mal pode ser trilhado. Rezemos neste dia de silêncio para que esta nova criação seja uma semente de conversão para nós.

Laudato si’!

Cruz de São Damião, desconhecido, século XII, Basílica de Santa Clara, Assis