Quinta-feira, 15 de abril
QUINTA-FEIRA SANTA – ANO C
Lc 22, 39-46

Hoje entramos no ápice da história da salvação com a liturgia do Tríduo Pascal. Com o Tríduo Pascal concluímos também este itinerário de aprofundamento do Evangelho, lido com o olhar sugerido pela Laudato Si’ de São Francisco e a Laudato Si’ do Papa Francisco, em conexão com a criação. Convidamos você a desacelerar, estudar e rezar sobre estes versículos da Palavra. Por esse motivo, a leitura passagens de Lucas destes dias solenes serão focadas na localização dos fatos, imersos na criação. Uma horta, uma montanha e um jardim. Esta noite, encontramo-nos no jardim do Getsêmani, na companhia das oliveiras na hora da oração, do abandono, da agonia de Jesus.

Getsêmani – em hebraico “gat šemanîm” – significa “lagar de azeite” ou “prensa”, o local onde as azeitonas são prensadas. O lagar, na tradição judaica, lembra a vingança de Deus, por exemplo, quando o profeta Isaías diz: “Eu pisei sozinho o lagar, e ninguém dentre os povos me auxiliou.” (Is 63, 3) Hoje conheceremos melhor, nesta prensa, qual é a vingança de Deus através da experiência de Jesus. Uma narração, a de Lucas, que nos descreve um homem profundamente humano, que sofre, que sua sangue, que chora, um Cristo doloroso (Christus patiens) que, graças à cultura franciscana, nos ajudou, séculos mais tarde, a escapar da imagem “gloriosa” da cruz, quase como se Deus nem tivesse sofrido a paixão por saber que ressuscitaria. Em vez disso, Lucas, e mais tarde a arte e a cultura que se desenvolveram a partir do século XIII, nos mostra com precisão o sofrimento, o pranto de Deus diante do sofrimento.

Oração no Horto, Andrea Mantegna, 1455, National Gallery de Londres

Aqui retornam muitos temas que já vimos ao longo do caminho da Quaresma, há algumas semanas, na cena da Transfiguração: o diálogo Pai-Filho, a busca pelo rosto, a companhia dos três apóstolos que não entendem o que têm diante de si. Aqui, quase num contraste com a luz do Monte Tabor, a escuridão desce sobre esta montanha, é noite, e a narração de Lucas fala de todas as horas da noite: da captura, do julgamento, da provação, da solidão, do eclipse em que ao meio-dia escurece em toda a terra. Uma noite que dura o dia todo, com decepção, com silêncio. É a noite da velha criação, que precede o amanhecer de um novo dia. Acontecerá como na primeira criação, quando havia trevas, e com uma palavra Ele criou a luz. Mas hoje, depois da festa que aconteceu numa sala de jantar (um cenáculo), um pouco bêbados e um pouco chocados, no início desta longa noite, entramos no recinto da prensa de azeite.

Comparado com os outros evangelistas, o relato de Lucas se concentra no tema da misericórdia. A sua narração, nesta passagem tão delicada em que transparece toda a tensão humana e divina de Jesus, se eleva para nos mostrar o rosto misericordioso do Pai. Jesus está preocupado com seus discípulos, mais do que consigo mesmo, quando lhes diz: “Orai para não cairdes em tentação.” Seu pensamento vai para nós, que bêbados corremos o risco de não entender o que estamos vivendo, o que está na nossa frente.

“Conforme o seu costume, Jesus saiu dali e dirigiu-se para o monte das Oliveiras.” Jesus sai do cenáculo, sai de uma casa feita de paredes, e a partir deste momento passará por palácios e lugares de tortura, por pátios abertos, pelas ruas, chegando até um monte. A partir deste momento ele viverá completamente fora, imerso na criação e no grito por justiça humana. Lucas nem sequer menciona o Getsêmani, mas nos fala da prensa de azeite descrevendo o rosto de Jesus. Um lugar de hábitos: todas as noites desta semana Jesus se retirou em oração precisamente nesse lugar, neste templo. Os discípulos estão também com ele. “Ao chegar àquele lugar”, como dito por Lucas, mostra-nos o valor sagrado desse jardim, pois na tradição o lugar por excelência era o templo de Deus; todo o resto era um não-lugar. O lugar é o espaço do diálogo com Deus, onde rezamos. E de fato Jesus pede a seus amigos: “Orai”. Ele pede quase como uma súplica. Ele nos pede isso esta noite, dentro do clamor que vivemos todos os dias. Devemos aprender a orar, a pedir a Deus não o que queremos, mas o que é bom. E orar por quê?

Orai para não cairdes em tentação.” As tentações são o que vimos no início da Quaresma, no deserto, todas as tentações: pão, poder, Deus com uma varinha mágica. Em outras palavras, a tentação de ser “eu no centro”, de possuir todas as coisas, as relações com os outros, o planeta. A oração é fundamental em nosso processo de conversão ecológica. Não apenas um bom hábito ou algo que se faz porque a paróquia ou diocese nos diz, mas é a base para não cair em tentação. Jesus entra no horto, mas pede para não cair em tentação.

Photo: nappy/Pexels

“Depois se afastou deles à distância de um tiro de pedra e, ajoelhando-se, orava.” Jesus primeiro de tudo distancia-se dos discípulos, procura o diálogo íntimo, separa-se porque é ‘santo’. Mas é bom me debruçar sobre essa expressão por um momento: por que um tiro de pedra? A referência é à fuga do rei Davi, perseguido por seu filho Absalão (em hebraico אַבְשָׁלוֹם, que significa “o pai é a paz”), que se refugiou no Monte das Oliveiras e foi atacado por um arremesso de pedras. Jesus, o novo Davi, está agora “quase” a poucos passos de distância, está ao alcance de seus discípulos. Todos podem feri-lo, todos podemos feri-lo com negação, com solidão, com traição: Jesus é o cordeiro que se deixa ferir por seus discípulos. O mal profundo é o abandono: o sofrimento de Deus está na sua solidão em relação ao homem. E na prensa de azeite do Getsêmani, esta noite, esse abandono é levado ao mais alto nível, quando o próprio Jesus sentirá o abandono do Pai. Totalmente humano, Jesus escolhe viver este imenso drama que o ser humano experimenta quando abandona Deus. Mas no caso dele tudo é mais agudo, sendo uma laceração da própria Trindade, o abandono do Pai em relação ao Filho. Tal é o amor de Deus pelo ser humano que ele experimenta sua própria laceração!

Ao contrário dos outros evangelhos sinóticos, em Lucas é dito: “e, ajoelhando-se, orava”,  pulando a referência ao terror e à angústia que é dramaticamente destacada nos outros relatos. Jesus se ajoelha, ao passo que a oração geralmente era recitada em pé, e é uma oração contínua, definida com o verbo no imperfeito. Uma oração cósmica, em contato com a Mãe Terra, na qual Jesus chama Deus de “Abbà”, ou “Pai”, palavra que nos lembra a palavra criadora, uma nova criação, partindo das trevas e do mal do mundo. Antes de tudo, Jesus se distancia do mal, pede ao Pai: “se queres, afasta de mim este cálice!”, ou seja, o cálice do sofrimento que é desejado pelos homens. Deus não quer o mal: são os homens que fabricam cruzes, infligem sofrimento aos irmãos e à criação. Deus sofre este mal e, se pudesse escolher, preferiria que este cálice estivesse longe de si. Mas ele também foge da tentação de um Deus com uma varinha mágica, tentação de poder e imunidade, dizendo: “Não se faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua”. A raiz de todo mal no mundo está na exclusão de Deus, quando colocamos nosso ego no centro. ‘Minha’ vontade que exclui a vontade de Deus, a vontade do bem. Jesus tem o olhar centrado, como Francisco entenderá com o voto de “nada de seu”. Não basta ser pobre, mas na vida deve-se aspirar a não reter nada de próprio porque a posse é o contrário do amor. No Getsêmani, isso fica incrivelmente claro.

Ter fé em Deus mesmo além do mal, mesmo além da injustiça. Esta querida serva com quem aprendemos a caminhar neste caminho rumo à Páscoa, uma serva chamada Justiça: afinal, se pensarmos bem, não é justo que Jesus seja condenado e morto como inocente, mas a graça de Deus é mesmo maior do que a óbvia injustiça. A vontade humana teria feito Jesus fugir; a vontade de Deus o faz resistir no jardim. Que grande ensinamento Jesus nos dá nesta noite de solidão, silêncio e dor: “não se faça a nossa vontade”. Nossas orações são tantas vezes egoístas, pedindo o bem para nós mesmos: nossa saúde, nosso trabalho ou, em casos de maior altruísmo, a saúde e o trabalho de nossos entes queridos, a vitória de nossas guerras, o bem-estar de nossas cidades. Mas sim, “seja feita a vossa vontade”, como sempre rezamos no Pai Nosso, uma vontade de bem para todos, que vai além da nossa ideia de justiça. Grande ensinamento de Jesus, justamente na mais alta demonstração de sua humanidade: não era só Deus que sabia que estava ressuscitando, mas aqui estava um homem que se sentiu dilacerado em seu relacionamento com o Pai, vivenciando uma imensa injustiça. Em nossas injustiças, em nossas orações, sabemos que temos Jesus ao nosso lado, mas ele, por outro lado, estava terrivelmente sozinho aqui.

Photo: Julia Volk/Pexels

O Evangelho de Lucas é o evangelho da misericórdia, da doçura, e aqui isso também se confirma: nesta cena de angústia, escuridão e solidão, “apareceu-lhe então um anjo do céu para confortá-lo”. Há um raio de luz, um corte na escuridão, iluminando este homem ajoelhado à distância de um tiro de pedra de seus amigos adormecidos, um anjo anunciando, lembrando da promessa. E nesta agonia, na luta, “orava ain­da com mais instância”: a oração é a única arma que temos diante do sofrimento, do mal do mundo, das guerras, das injustiças, para nos lembrar que o problema não é morrer – justa ou injustamente, cedo ou tarde todos vamos morrer – mas o problema é viver sem dialogar com Deus. A oração é a nossa oportunidade de diálogo com Deus, pela certeza de sua presença ao nosso lado. Em Jesus isso é ainda mais dramático porque Deus é ele mesmo, e neste moinho ele sente a dilaceração de si próprio, uma dor que nós mesmos não podemos imaginar. A ponto de que “seu suor tornou-se como gotas de sangue a escorrer pela terra”. A própria vida, que para os judeus residia no sangue, já jorra do corpo e cai na Mãe Terra, como se já antecipasse o sepultamento. O suor que expressa a vida ativa, o trabalho, nosso cotidiano, nossos esforços através da água irmã que sai dos poros de nossa pele torna-se, naquela prensa de azeite, profecia de morte. Jesus está como que “esmagado”, como as azeitonas no lagar. Ele conscientemente vê todo o mal do mundo que receberá nas próximas horas. Esta é a vingança de Deus, que nos é mostrada pelo rosto de Jesus.

“Depois de ter rezado, levantou-se, foi ter com os discípulos e achou-os adormecidos de tristeza.” Tristeza e agonia. A um tiro de pedra. Esta é a grande diferença entre os discípulos e Jesus: a nossa humanidade vive muitas vezes na tristeza, que já nos derrota na dor, nos faz dormir. A divindade de Jesus está na luta, no desejo de se levantar – Lucas usa o mesmo verbo para indicar a ressurreição – um desejo forte, a ponto de se repetir duas vezes em pouco tempo, quando “disse-lhes: ‘Por que dormis? Levantai-vos, orai, para não cairdes em tentação’.” Levante-se e ore. Aqui está o que fazer diante do mal, mesmo o mais injustificável. Este é o maior ensinamento que recebemos, nesta noite, entre as oliveiras do lagar de Jerusalém.

São Francisco, em sua estupenda paráfrase do Pai Nosso, lembra-nos que: “Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu: para que vos amemos de todo coração, pensando sempre em vós, com toda a alma, desejando sempre a Vós, com toda a mente dirigindo sempre todas as nossas intenções a Vós, buscando em tudo a vossa honra, e, com todas as nossas forças, destinando todas as nossas forças e os sentidos da alma e do corpo para o serviço do vosso amor e não para outra coisa; e amemos a nossos próximos como a nós mesmos, arrastando-os todos para o vosso amor com toda força, alegrando-nos pelos bens dos outros como pelos nossos e compadecendo-nos com eles nos males, e não fazendo a ninguém nenhuma ofensa.” (Fontes Franciscanas 270) 

Agradecemos ao Senhor por este grande ensinamento que ele nos oferece nesta noite de silêncio e solidão. Rezemos nesta noite, dedicando também o silêncio para que possamos aprender com ele a viver nas injustiças e maldades do mundo.

Laudato si’!